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Críticos afirmam que sistema judicial do país exerce enorme pressão por confissões e que, na prática, não há presunção de inocência. Carlos Ghosn, que comandava a multinacional Nissan, foi preso em novembro de 2018 no Japão
AFP
A fuga do empresário franco-brasileiro-libanês Carlos Ghosn da prisão domiciliar em que era mantido no Japão volta a lançar luz não apenas sobre as acusações que pesam contra ele, mas sobre o sistema judicial japonês – mais especificamente, o que é chamado de “sistema de reféns”.
O executivo foi detido inicialmente em Tóquio em novembro de 2018, sob diferentes acusações: de ter subnotificado sua renda durante anos, de quebra de confiança (ofensa imputada em geral àqueles que ocupam altos cargos e se aproveitam da posição para cometer infrações), de usar a Nissan, empresa que comandava, para encobrir perdas financeiras pessoais milionárias e de enriquecer de modo ilícito por meio de transações feitas no Oriente Médio.
Fuga de Ghosn: o que se sabe até agora
Seu julgamento pela Justiça japonesa era esperado para abril de 2020, segundo a agência Reuters.
Ghosn nega ter cometido qualquer infração e afirmou nesta terça-feira (31/12), em comunicado, que não escapou da Justiça, mas sim “da injustiça e da perseguição política” no Japão.
Mas o que há de polêmico no sistema judicial japonês?
Baixa criminalidade
Ao viver no Japão, é fácil que as pessoas se desacostumem com o crime – porque ele é tão raro. As incrivelmente baixas taxas de criminalidade do país são geralmente atribuídas à cultura homogênea, à baixa desigualdade de renda e ao pleno emprego. Mas também é verdade que muitas pessoas têm pavor de serem presas.
Comecei a entender o motivo em 2014, quando uma artista que eu conhecia, Megumi Igarashi, foi detida por distribuir “material obsceno”. Igarashi havia escaneado seus genitais e usado o modelo para fazer chaveiros e um enorme caiaque amarelo.
Megumi Igarashi, foi detida por distribuir ‘material obsceno’ – acusação que a fez ficar presa e incomunicável por 3 semanas
AFP
A maioria das pessoas achou a ideia engraçada, e ela ficou conhecida como a “artista da vagina”. Mas promotores de Tóquio não viram graça. E a mantiveram detida, sem comunicação com o mundo externo, durante três semanas.
“Por que prender alguém por tanto tempo por conta de algo tão banal?”, perguntei a uma amiga.
“Por que eles têm esse poder”, ela respondeu.
No Reino Unido, apenas suspeitos de terrorismo podem ficar presos sem indiciamento por até 14 dias – e isso já causa polêmica no país. No Brasil, a prisão temporária tem duração de cinco dias, com possibilidade de prorrogação – ou 30 dias, no caso de crimes hediondos. No Japão, o autor de um pequeno furto pode ficar detido por 23 dias sem acusação formal.
Pressão para confessar
“O sistema de Justiça criminal japonês é focado no interrogatório. O objetivo é obter uma confissão”, diz Nobuo Gohara, que trabalhou na Promotoria japonesa por 23 anos, até se demitir. Ele hoje trabalha como advogado e faz campanha por uma reforma no sistema judiciário.
“Um suspeito que admite um crime pode até ser libertado da prisão”, ele explica à BBC. “Mas se uma pessoa se recusa a admitir o crime, a Promotoria vai se opor fortemente a sua libertação, até que obtenha uma confissão.”
Foi o que aconteceu com Tomohiro Ishikawa. Em 2010, o então parlamentar foi preso sob acusação de receber propina. Durante três semanas, foi mantido em uma cela minúscula, sem aquecimento. A cada dia, era interrogado durante 12 horas, sem a presença de um advogado. Ele eventualmente admitiu culpa em um crime menor e, passados quase dez anos, ainda se ressente.
“Os promotores japoneses são muito persistentes”, ele disse à BBC. “Eles escrevem o roteiro antes de realizarem a prisão. Daí eles te forçam a confessar, segundo a história (que planejaram). No meu interrogatório, eles não anotaram o que eu falei. Me mostraram o que haviam escrito antecipadamente e exigiram que eu assinasse. Muitas vezes, disse que não iria assinar, porque (o que estava escrito) não era o que eu dissera.”
“Às vezes eles gritavam comigo”, prossegue. “Em determinado momento, o vice-procurador começou a chorar, perguntando por que eu estava mentindo.”
Essa pressão por uma confissão é ainda mais preocupante considerando-se que 89% das condenações criminais no Japão são parcialmente ou totalmente baseadas nessas confissões.
Há inúmeros exemplos de pessoas que passaram anos na prisão por crimes que não cometeram, ou de casos em que emergiram sérias dúvidas quanto à culpa dos réus, por confissões de teor duvidoso.
Um ex-boxeador profissional chamado Iwao Hakamada foi condenado por homicídio e sentenciado à morte em 1968. Sua condenação foi baseada em uma confissão que ele fez depois de um longo interrogatório – e que depois ele deixou de reconhecer.
Em 2014, depois de passar 46 anos no corredor da morte, Hakamada foi solto porque seu julgamento foi considerado não confiável e não havia evidência que sustentasse sua confissão. Aos 82 anos, ele ainda briga para limpar seu nome e espera por um possível novo julgamento.
Iwao Hakamada passou quatro décadas no corredor da morte, mas seu julgamento acabou sendo considerado não confiável
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O poder dos promotores
Segundo Gohara, na raiz do problema está o enorme poder dos promotores.
“Sob a lei japonesa, a Promotoria tem direito exclusivo de indiciar. Também tem o direito de derrubar as acusações. Isso significa que a Promotoria é muito poderosa no sistema criminal japonês. Além disso, na maioria dos casos, os juízes seguem as decisões dos promotores.”
Em artigo recente no jornal Japan Times, o professor de Direito Colin Jones, da Universidade Doshisha, descreveu a extraordinária posição ocupada por procuradores-sêniores.
“Enquanto o oficial de mais alto escalão no Ministério da Justiça é o vice-ministro administrativo, ele é na verdade inferior, tanto em termos de senioridade quanto de salário, ao procurador-geral e a diversos outros promotores. E, ao contrário de outros burocratas de alto escalão, (os promotores) são indicados por um processo que envolve uma declaração ao imperador (japonês)”, ele escreveu.
Esse é o sistema que acusados como Carlos Ghosn enfrentam: quando não assinam uma confissão, são presos por mais tempo e possivelmente sob acusações mais sérias. Se houver indiciamento pela Promotoria, as chances de o réu ser julgado culpado são de 99%.
“Oficialmente, existe a presunção da inocência”, diz Gohara. “Mas mesmo que o suspeito não seja culpado, há uma vantagem para (incentivá-lo a) admitir o crime. Esse é o efeito mais cruel do ‘sistema de reféns’ da Justiça.”
Depois dos primeiros 23 dias de prisão do suspeito, os promotores são autorizados a voltar a prendê-lo sob uma acusação levemente diferente, com aval de juízes. Daí, ele volta a passar por 20 dias de interrogatório.
Foi isso o que aconteceu com Carlos Ghosn, duas vezes. No total, ele foi interrogado por 53 dias antes de ser indiciado formalmente.
Sem fiança
Em muitos países, o indiciamento formal seria o gatilho para que um suspeito fosse libertado sob fiança. Mas, novamente, não é o caso do Japão – e não foi o caso de Ghosn.
Em uma entrevista recente à agência France Presse, Ghosn afirmou que a recusa da Justiça de Tóquio em lhe possibilitar fiança “não seria normal em nenhuma outra democracia”. Ele acusou a Justiça de “me punir antes de me julgar”.
Ghosn acabou sendo autorizado a falar com familiares, por 15 minutos por dia, através de um vidro na prisão. Depois, em março deste ano, foi autorizado a sair da prisão sob fiança, mas continuaria a ser monitorado de perto pelas autoridades – até sua fuga, neste 31/12.
Em contraste, eis o tratamento recebido por outra prisão no alto escalão do mundo corporativo das multinacionais: a da empresária chinesa Meng Wanzhou, detida em 1º de dezembro de 2018 no Canadá.
Meng é CFO da gigante de telecom chinesa Huawei. Ela é procurada pela Justiça dos EUA, acusada de conspirar para driblar sanções internacionais contra o Irã.
Dez dias depois de sua prisão, em 11 de dezembro, Meng foi solta sob fiança de 10 milhões de dólares canadenses. Ela está em sua residência em Vancouver, usando tornozeleira eletrônica.
Apoiadores do sistema japonês negam que as confissões estejam por trás da taxa de condenação de 99,9%. Eles argumentam que os promotores japoneses indiciam em quantidades muito menores do que nos EUA, por exemplo.
Em outras palavras, só indiciam quando têm certeza de que podem obter uma condenação. Em 2015, segundo as estatísticas oficiais, a taxa de indiciamento foi de 33,4% do total de investigados.
Os ‘guardiões da Justiça’
Mas o caso de Carlos Ghosn levanta algumas questões. Diversos advogados disseram à BBC que as acusações contra ele parecem fracas. Em um editoral no jornal Nikkei, o advogado corporativo Stephen Givens descreveu o caso contra ele como “sopa rala”.
“Sob qualquer avaliação objetiva, os desvios de conduta de que (Ghosn) é acusado foram menos sérios do que os malfeitos corporativos que rotineiramente passam despercebidos no Japão”, ele escreveu. “Nada do que sabemos que Ghosn supostamente fez cheira como um crime sério merecedor de prisão.”
Então, por que a unidade especial investigativa da Promotoria de Tóquio investiu tanto nesse caso? Ishikawa acredita que o real crime de Ghosn, sob os olhos da elite acusatória do Japão, é a ganância. Ele foi o primeiro executivo-chefe no país a ganhar milhões de dólares por ano, e isso mudou a cultura japonesa.
“A Promotoria de Tóquio (…) é motivada por sua crença de ser guardiã da Justiça. Em uma era de desigualdade econômica, eles querem ficar conhecidos como aqueles que foram atrás dos ricos.”
A decisão de Ghosn de fugir para o Líbano pode ter sido influenciada por outro aspecto do sistema judicial japonês: não há “risco duplo” (procedimento legal que, em alguns sistemas, impede que uma mesma pessoa seja julgada duas vezes pelo mesmo crime).
Mesmo que ele fosse inocentado das acusações contra si, a Promotoria poderia simplesmente indiciá-lo novamente. Esse é um dos motivos, segundo críticos, pelos quais tantos tantos suspeitos confessam no Japão.
(ATUALIZAÇÃO: esta reportagem foi originalmente distribuída pela BBC News Brasil em 31 de dezembro de 2019. Depois disso, Carlos Ghosn se pronunciou no Líbano. Ele disse que fugiu porque “princípios dos direitos humanos foram violados” com sua prisão e que a Justiça japonesa o privou de seus documentos de defesa. A ministra da Justiça do Japão respondeu às declarações do ex-executivo, dizendo que ele tem propagado informações falsas no Japão e no mundo sobre o sistema jurídico e sua prática naquele país. E que isso é “absolutamente intolerável”.)

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