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Em um pequeno resort de esqui, Huguette Müller encontrou a salvação, graças à coragem de um médico que permanecia anônimo até agora. Val d’Isère em 1938; foi nesse resort de esqui que Huguette e Marion Müller se abrigaram
Roger Viollet/Getty Images/BBC
Quando a primeira neve do inverno de 1943 começou a cair, em dezembro, Huguette Müller e sua irmã, Marion, silenciosamente deixaram a cidade francesa de Lyon e iniciaram sua subida aos Alpes, para um dos mais altos resorts de esqui na Europa. Ali, sobreviveriam à morte graças à coragem de um médico de uma pequena aldeia alpina, embora seja uma história que essa aldeia tente hoje esquecer.
É essa história que a BBC conta a seguir.
Naquele ano, com a França sob a ocupação nazista, Lyon havia deixado de ser um lugar seguro para as irmãs, já que Klaus Barbie — o líder da polícia nazista SS que ficou conhecido como o “açougueiro de Lyon” — estava intensificando sua busca por judeus como elas. As duas jovens apostaram sua sobrevivência na ida à aldeia de Val d’Isère, a alguns quilômetros da fronteira da França com a Itália.
Huguette já havia fugido de Nice, antes um porto seguro para judeus enquanto estava sob o controle italiano. Mas, em setembro de 1943, quando a Itália saiu da guerra, os nazistas avançaram pela Riviera francesa, prendendo milhares de pessoas.
Uma delas era Edith, mãe das garotas, capturada enquanto tentava obter documentos falsos para ela e para Huguette. Edith acabaria deportada em outubro e enviada à câmara de gás ao chegar ao campo de Auschwitz — algo que as irmãs só saberiam mais tarde, depois do fim da guerra.
Aos 15 anos, Huguette conseguira chegar a Lyon para viver com Marion, de 23. Dessa vez, as duas irmãs tinham de se mudar novamente.
A escolha de Marion por ir a Val d’Isère (acima, em 1939) é algo que até hoje intriga Huguette
Roger Viollet/Getty Images/BBC
No inverno de 1943, no entanto, as montanhas dos Alpes eram um lugar arriscado para se esconder. Soldados alemães recém-chegados do front russo estavam hospedados no Hotel des Glaciers, também em Val d’Isère. Eles pilhavam hotéis e restaurantes e queimavam chalés no caso de encontrar alguém que tivesse sido convocado (e deixado de ir) para trabalhar em fábricas alemãs. Locais ainda se referem à ocupação nazista como uma época de “terror”.
A SS também estava à espreita em busca de estranhos que fossem suspeitos. Por isso, a escolha de Val d’Isère como destino é algo que até hoje intriga Huguette, aos 92 anos de idade. Uma possibilidade é que Marion tivesse sido orientada a ir para os Alpes por seu futuro marido, Pierre Haymann, membro da resistência francesa. Mas as irmãs se encontraram em grave perigo quando, pouco antes do Natal, Huguette escorregou e quebrou a perna.
O médico da aldeia afirmou que o rompimento era tão grave que a adolescente teria de ser transferida ao hospital em Bourg St Maurice, no vale ali perto. Assustada de que a transferência fizesse com que as meninas fossem identificadas, Marion entrou em pânico e deu um soco na cara do médico.
Em uma manhã nublada em San Francisco, nos EUA, Huguette respira fundo e continua contando a história de como sobreviveu ao Holocausto, sob os cuidados daquele mesmo médico.
“Acho que fiquei lá por seis meses, não lembro ao certo — só me lembro de que era seguro”, ela diz.
Antes, nem Huguette nem Marion aceitavam falar de seu período passado nos Alpes. Só resta uma fotografia daquela época, guardada em uma velha mala na casa de Marion — que morreu em 2010 —, que mostra a jovem de pé diante de um chalé na montanha nevada.
A única foto de Marion nos Alpes mostra ela diante de um chalé nas montanhas
Rosie Whitehouse/BBC
É só agora, 76 anos depois, que Huguette decidiu que quer que sua história seja contada.
As duas irmãs haviam nascido em Berlim nos anos 1920 e fugiram da Alemanha para a França com os pais em 1933, pouco depois de Hitler ascender ao poder.
Marion tinha documentos falsificados, mas Huguette, não. Seus pais tomaram o cuidado de batizá-la, para evitar que tivesse a letra “J” de judia marcada em seu documento de identidade, mas este atestava que ela havia nascido em Berlim — informação que seria suficiente para que ela fosse presa e enviada à morte quando chegasse ao hospital de Bourg St Maurice com a perna quebrada.
Huguette lembra que, naquele dia, o médico explicou que, sem os devidos cuidados, ela acabaria com uma perna mais curta que a outra. “Respondi que era melhor mancar do que estar morta”, ela conta.
Surpreendentemente, o médico se ofereceu para cuidar dela, durante seis meses, na casa dele.
Para ela, é um mistério por que um completo estranho arriscou sua vida para cuidar de uma adolescente. Se ele tivesse sido flagrado, ele e sua família seriam mortos ou detidos.
Huguette depois da guerra; ela viveu com a irmã em Paris e depois mudou-se aos EUA
Rosie Whitehouse/BBC
“Quando voltei a Val d’Isère nos anos 1970 para encontrá-lo e agradecê-lo, já era tarde demais”, ela conta. “A viúva dele atendeu a porta e disse que ele estava morto. Foi isso. E hoje eu não consigo lembrar de seu nome completo.”
Uma rápida busca no Google reativa sua memória e revela o nome do médico em poucos segundos. A principal rotatória de Val d’Isère é Rond-Point Dr Pétri. O médico, confirma Huguette, se chamava Frédéric Pétri e morava em um grande chalé com sua mãe e sua irmã. “Ele era muito gentil”, lembra ela. “Ele me carregava para o jardim quando o clima estava bom.”
Um site de genealogia revela que Pétri acabou se tornando prefeito de Val d’Isère. Mas ele nunca contou ao público que havia escondido (e cuidado de) uma garota judia durante a guerra.
Frédéric Pétri em 1936; “ele era profundamente generoso e durante toda a vida fez o que pôde pelos demais”, diz sua filha
Pétri Family/BBC
A filha dele, Christel, não se surpreende com a revelação. “Ele era movido por uma paixão, não por engessar pernas quebradas, mas por cuidar de gente”, ela conta. “Era profundamente generoso e durante toda a vida fez o que pôde pelos demais.”
Hoje, Val d’Isère se estende por quase 5 km por um estreito altiplano na montanha. Mas, nos anos 1940, era um lugar pequeno, com menos de 150 habitantes. “A casa do meu pai era na rua principal”, explica Christel. “Esconder uma menina judia ali era algo perigoso.”
Christel tenta entender por que as duas irmãs escolheram se esconder em uma aldeia tão minúscula. Ela acha que a resposta pode estar relacionada ao motivo que trouxe seu próprio pai a Val d’Isère.
Casa de Pétri foi onde Huguette ficou abrigada até se recuperar de lesão na perna
Pétri Family/BBC
Val d’Isere em 1939; vila era ponto da resistência francesa
Roger Viollet/Getty Images/BBC
Em 1938, o jovem médico, apaixonado por esportes de inverno, decidiu se juntar a amigos que haviam construído um resort ali, alguns anos antes. Como muitos dos homens que comandavam os hotéis e escolas de esqui por ali, Pétri nascera na Alsácia, região do leste da França que antes da Primeira Guerra Mundial havia sido ocupada pelos alemães.
Christel acha que isso embutiu no pai um desgosto pela Alemanha que foi depois reforçado pelos dois anos que ele passou como prisioneiro em um campo de guerra perto de Stuttgart, de 1940 a 42, já na Segunda Guerra.
Quando os alemães chegaram aos Alpes, em setembro de 1943, os jovens homens e mulheres de Val d’Isère usaram as melhores armas que tinham: os esquis. Com seus conhecimentos das montanhas, eles criaram uma rede de resistência. Um dos membros do grupo era Germain Mattis, instrutor de esqui que acabou preso pelos alemães em 1944 e morto em um campo de concentração aos 27 anos.
Os Alpes em 1952, depois da guerra
Roger Viollet/Getty Images/BBC
Essa pode ter sido a razão de Marion ter escolhido Val d’Isère como esconderijo. Seu futuro marido, Pierre Haymann, não só era membro da resistência, como também tinha raízes familiares na Alsácia. É bem possível que ele tivesse conexões no resort.
Confiando no médico Pétri, Marion deixou sua irmã se recuperando da perna quebrada em Val d’Isère e seguiu viagem rumo a Toulouse, onde estava Pierre. Foi só seis meses depois, em 1944, que ela voltou ao local. Agora grávida, ela contou que escapou por pouco da SS no caminho.
Na tentativa de conhecer mais as atividades de resistência nazista em Val d’Isère, a reportagem da BBC enviou diversos e-mails a locais e deixou postagens na página de Facebook do resort. Só recebeu uma resposta, de Roby Joffo, cujo tio, Joseph Joffo, escreveu um dos mais conhecidos livros franceses sobre o Holocausto, Os Meninos que Enganavam os Nazistas.
O pai de Roby, Jenri, e seu tio Mauricio (os irmãos mais velhos de Joseph Joffo), também estavam tentando se manter incógnitos em Val d’Isère durante o inverno de 1943 e 44, embora se sentissem seguros o bastante para trabalhar em um cabeleireiro na rua principal, de frente ao chalé de Pétri. As duas famílias, Joffo e Pétri, se mantêm próximas até hoje.
Roby assegura que havia mais judeus se escondendo no vale naquela época. Ele telefona a conhecidos em Val d’Isère para perguntar a respeito, mas ninguém parece ter mais informações.
O Holocausto na França
Cerca de 75 mil judeus foram deportados da França para campos de concentração entre 1940 e 1944. Só em 1995 o então presidente Jacques Chirac admitiu a responsabilidade francesa. “Aquelas horas escuras para sempre mancharão nossa história, e insultamos nosso passado e nossas tradições”, ele declarou. “Sim, a loucura criminosa dos ocupantes foi secundada pelos franceses, pelo Estado francês.”
Só duas autoridades francesas foram condenadas por crimes contra a humanidade. Uma foi Paul Touvier, chefe de inteligência local que serviu sob Klaus Barbie. O outro foi Maurice Papon, preso em 1998 por ter participado da deportação de 1,7 mil judeus de Bordeaux. O alemão Barbie, por sua vez, foi extraditado da Bolívia à França em 1983 e condenado por crimes contra a humanidade.
Christel diz que não se surpreende pelo silêncio em torno daquele período em Val d’Isère. Ela diz que ninguém nunca fala a respeito do que aconteceu durante a guerra, motivo pelo qual até mesmo famílias que ainda moram ali não têm ideia de que membros da resistência francesa agiam na região.
A guerra dividiu comunidades, explica Jane Metter, que pesquisa esse período na Universidade Queen Mary, em Londres. Para os que colaboraram com o regime nazista e os que resistiram a ele, “a única forma de continuar a conviver com seus vizinhos no pós-guerra era esquecer o que havia acontecido”.
O ato de Frédéric Pétri, de ter escondido Huguette, era algo “100% perigoso de se fazer”, e algo que não necessariamente seria aplaudido após a libertação francesa, uma vez que a região era “altamente católica, conservadora e de direita”.
Documentos falsos de Marion, irmã de Huguette, no nome de Juliette Giraud
Rosie Whitehouse/BBC
Os arquivos em Annecy, perto de Val d’Isère, estão repletos de cartas escritas a autoridades durante a guerra, muitas vezes anonimamente, denunciando as pessoas por seus atos de resistência.
Dois meses depois que as irmãs foram embora dali, Val d’Isère foi libertada dos nazistas. Mas a resistência local continuou em ação, apoiando seus companheiros na Itália, que ainda estava ocupada pelos alemães. Novamente Pétri colocaria sua vida em risco por um completo estranho: em uma noite de inverno de novembro de 1944, ele foi resgatar um grupo de soldados britânicos que havia ficado retido pela neve nas montanhas.
Quando Pétri alcançou o grupo britânico, só havia um sobrevivente do frio extremo. Alfred Southon mal conseguia respirar, mas Pétri se recusou a abandoná-lo. Carregou-o em suas costas até chegar a seu chalé e, com a ajuda da mãe, cuidou dele até que se recuperasse.
Caminho de Val d’Isère a Col de l’Iseran, em 1939; Pétri não contou a ninguém que ajudou Huguette
Roger Viollet/Getty Images/BBC
Mais uma vez, essa iniciativa talvez se mostrasse impopular em Val d’Isère, já que muitos franceses se ressentiam do que viam como abandono britânico a eles em momentos da guerra. Assim como Pétri havia se silenciado sobre sua ajuda a Huguette, ele tampouco mencionou sua ajuda ao soldado britânico — até que o próprio Southon se tornasse uma celebridade dentro do Reino Unido, em 1953, quando sua história foi contada em um documentário de rádio da BBC.
Marion se casou com Pierre e, depois da guerra, estabeleceu-se em Paris com seus dois filhos pequenos, François e Sylvie, além de Huguette. O casamento durou pouco, e Marion mais tarde recomeçou a vida em Londres, com seu segundo marido, Joe Judah, e seu terceiro filho, Tim.
Marion com seu filho Tim e Huguette; irmã morreria em 2010
Rosie Whitehouse/BBC
Em 1947, Huguette foi a San Francisco encontrar-se com seu pai, que havia sobrevivido à guerra vivendo escondido em Paris. Nos EUA, ela apaixonou-se por James Carleton e teve um filho, Norman. Desde então mora lá.
Uma bandeja prateada que pertencia a sua mãe adorna hoje sua elegante casa.
Huguette com Tim Judah e a bandeja que pertenceu a sua mãe; ela hoje anseia que seu salvador seja formalmente reconhecido
Rosie Whitehouse/BBC
Huguette agora anseia que a bravura e a gentileza de Pétri sejam reconhecidas. A reportagem da BBC entrou em contato com o Yad Vashem, Centro de Memória do Holocausto em Jerusalém, para perguntar se este consideraria reconhecer Pétri como os chamados “justos entre as nações” — lista de indivíduos não judeus que arriscaram suas vidas para ajudar judeus durante os anos do Holocausto.
O Yad Vashem explica que esse reconhecimento pode levar anos.
A história da Segunda Guerra ainda persegue a França. A decisão de Huguette de revisitar o período mais difícil de sua vida dá também a Val d’Isère a chance de fazê-lo, mas ainda não está claro se a cidade estará pronta para isso.

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