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Os equívocos mais comuns nas análises do confronto entre Estados Unidos e Irã Americanos foram às ruas em Washington portestar contra a política americana para o Irã
Andrew Caballero-Reynolds/AFP
Impossível, a esta altura, prever os desdobramentos do enfrentamento entre Estados Unidos e Irã. Tentar analisar o Oriente Médio de forma desapaixonada é um desafio. Ninguém deve ter a prentensão a ser vidente num quadro tão complexo e ainda nebuloso. Mas é possível tentar evitar cometer erros comuns na leitura dos fatos. Elenco a seguir três concepções equivocadas, infelizmente frequentes em análises na imprensa e, sobretudo, nas redes sociais:
1) A morte do general Qassem Soleimani ajuda a combater o terrorismo
Há uma diferença essencial entre Soleimani e Osama bin Laden, o líder da Al-Qaeda, ou Abu Bakr al-Baghdadi, o autoproclamado “califa” do Estado Islâmico, todos mortos em operações do governo americano. É verdade que os três foram em última instância responsáveis por atentados crueis que mataram milhares de inocentes. Ninguém pode, em sã consciência, defendê-los. Mas Soleimani não pode ser simplesmente classificado como “mais um terrorista”.
Enquanto Bin Laden e Baghdadi comandavam estruturas voltadas para cometer atentados e disseminar o medo, Soleimani tinha uma ação de outra natureza. Como general das forças de elite de um Estado formal e reconhecido, seu poder era muito maior. Não se limitava aos ataques cometidos pela rede de milícias e grupos paramilitares que urdiu e financiava. Seu objetivo geopolítico envolvia o relacionamento estável com poderes estabelecidos em países como Iraque, Síria ou Líbano.
O grau de interferência de Soleimani na rede que apoiava era variável, como demonstra o estudo “Iran’s networks of influence in the Middle East”, do International Institute for Strategic Studies. É, portanto, um erro considerar que todo atentado do grupo xiita libanês Hizbollah fosse ordenado por Soleimani, embora as ações contassem em geral com seu beneplácito e muitas vezes cooperação. Do mesmo modo, os Houthis do Iêmen já lutavam contra o governo antes de serem apoiados pelo Irã.
A morte de Soleimani não desfaz essa rede nem os interesses que a mantêm. Basta lembrar o que aconteceu quando Israel matou o líder do Hizbollah Abbas al Musawi, em 1992. O substituto, Hassan Nasrallah, se revelou ainda mais violento projetou ainda mais o grupo com ataques a Israel e ações fora do país, em particular na Síria.
Embora o substituto de Soleimani, Esmail Qaani, não tenha a mesma história nem envergadura, a estrutura de poder sustentada pelo Irã no Iraque, no Líbano, no Iêmen, na Síria e por todo o Oriente Médio está não apenas viva, mas foi realimentada de ódio pelo Ocidente.
O ressurgimento do Estado Islâmico depois da retirada americana do Iraque em 2011 demonstra que a árvore venenosa de onde nasce o terrorismo tem raízes fundas, capazes a resistir ao corte de vários ramos, ou mesmo de troncos espessos. É possível até acreditar que Soleimani deveria ser morto apenas como punição pelos atos que cometeu. Mas é preciso reconhecer que sua morte, em vez de diminuir, aumenta o risco de guerra, novos ataques e atentados terroristas.
2) Donald Trump atacou apenas por interesse eleitoral
É verdade que a agenda de 2020 nos Estados Unidos será consumida pela campanha às eleições de novembro. Também é verdade que guerras sempre foram um truque fácil, usado por políticos cuja popularidade balança. Mesmo assim, há mais na ação de Trump do que a tentativa de mobilizar o nacionalismo americano num momento em que ele sofreu impeachment na Câmara e está prestes a enfrentar um julgamento no Senado.
Trump pode ter agido de forma instintiva ao ordenar o ataque que matou Soleimani, mas foi uma ação coerente com sua concepção de política externa. Ele é contra intervenções militares extensas e vive tentando retirar as tropas americanas do Iraque, da Síria e do Afeganistão. Mas sempre foi favorável a ataques rápidos, a ações “cinéticas” de impacto para combater o terror.
São evidentes os limites dessa visão, pelo motivo já exposto. Ela não dá conta dos fatores locais que mantêm o terrorismo vivo e acaba por alimentar o ciclo vicioso de ódio e violência. Mas isso não significa que seja uma visão eleitoreira ou desprovida de coerência. Ela pode, ao contrário, resultar em prejuízo eleitoral, caso Trump se veja obrigado a mais uma vez enviar soldados americanos ao Oriente Médio, por força da evolução dos eventos, que ele não controla.
3) O Brasil deve se manter neutro por interesse comercial
Assim como faz sucesso entre os brasileiros aquilo que o economista Alexandre Schwartsman chama de “keynesianismo de quermesse” – a deturpação politicamente conveniente das ideias do inglês John Maynard Keynes –, também sofremos com aquilo que poderíamos classificar como “mercantilismo de botequim”.
Trata-se da devoção inexplicável ao superávit comercial, que volta e meia surge nas entrelinhas de comentários. O mercantilista de botequim acredita que o Irã é importante para o Brasil por causa do saldo em torno de US$ 2 bilhões que mantemos nas trocas com iranianos. Também dirá que a preocupação mais importante do Brasil no momento são 20% do nosso superávit comercial oriundos do Oriente Médio. Profetizará que o agronegócio sofrerá enormemente se não puder exportar à região.
Nem é preciso recorrer a Keynes ou qualquer economista do século passado para enxergar o erro dessa visão. Ele já era evidente nas críticas feitas por David Ricardo no século XVIII. O comércio internacional sempre tem duas vias. A mais importante do ponto de vista estratégico não são as exportações, mas as importações.
Se o agronegócio brasileiro não puder mais exportar aos países do Oriente Médio, bem, ele é grande e competitivo o suficiente para vender a outros mercados. Há negociações para acordos de livre-comércio em andamento com vários países. Que tal compensar tentando abrir mercados no Japão? Ou na Europa? Ou noutras partes?
Quanto às importações, substituí-las é em geral bem mais difícil. Quando eclodiu a guerra Irã-Iraque, em 1980, o Brasil ainda era dependente do petróleo que vinha do Golfo. Faz tempo que não é mais assim. Entre os destaques das importações do Irã está hoje o delicioso pistache. Poderíamos viver sem ele? Provavelmente.
Há dezenas de bons motivos para criticar a posição subserviete do Itamaraty aos Estados Unidos. Ela é incoerente com nossa tradição diplomática e não há nenhuma garantia de que os americanos retribuam na devida medida (ainda mais se Trump perder a eleição…).
Também há bons motivos para criticar o Irã. Devemos fazer o possível para tentar evitar que obtenha a bomba atômica e condenar o apoio ao terrrorismo. Mas sabemos que o país é bem maior que isso – e temos interesse em manter relações estáveis e produtivas com os iranianos.
Nada disso, porém, tem relação com superávit comercial. Com reservas internacionais na casa dos US$ 370 bilhões, o mercantilismo de botequim não tem sentido algum. Essa conversa fiada só serve para jogar mais água na cerveja já choca da economia brasileira.

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