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Logo depois do plebiscito em que os britânicos decidiram pela saída da União Europeia (UE), em junho de 2016, publiquei neste blog um texto intitulado “Brexit, Trump e Bolsonaro”. Na ocasião, poucos acreditavam na viabilidade eleitoral de Donald Trump, menos ainda que o então deputado Jair Bolsonaro pudesse um dia chegar à Presidência. Eu mesmo era cético, embora não cego a ponto de ignorar as evidências do fenômeno político que se desenhava.
O tempo conferiu àquela análise um ar de profecia involuntária. Na essência, ela constatava o avanço de uma forma nova de populismo, de caráter nacionalista, ligado a partidos da ultradireita, que ganha volume no mundo desde o plebiscito britânico. Discutia as semelhanças e diferenças entre Trump, Bolsonaro e Boris Johnson, então líder da campanha pelo Brexit, hoje premiê consagrado nas urnas. 
Concluía afirmando que o movimento se definia mais pelo que negava – liberalismo, imigração, elites, intelectuais, cientistas, “midia”, “politicamente correto” ou qualquer entidade externa a que pudesse atribuir os males – do que propriamente pelo que propusesse ou afirmasse. Três anos e meio depois, Trump, Boris e Bolsonaro estão no poder. A onda de negativas atingiu o rochedo dos fatos e continuará, em 2020, a esboroar-se contra a realidade.
Continua a haver diferenças importantes de estilo e conteúdo entre os três. Trump é o mais protecionista e o mais nativista. Sua oposição à imigração flerta com o racismo. Boris é mais um conservador oportunista que propriamente um nacionalista. Não é um rebelde outsider, vem do coração da elite britânica. Não contesta a ciência climática, nem os benefícios do livre-comércio, é até liberal nos costumes. Pode ser considerado uma reação da direita tradicional ao avanço dos nacionalistas. Bolsonaro, em contrapartida, se distingue pelo conservadorismo cultural, pelo armamentismo, pelo desafio aos direitos humanos e pelo revisionismo histórico. 
Mas os três partilham características comuns: desprezo pela verdade factual, pela imprensa e pelo conhecimento acadêmico; comunicação direta via redes sociais; discurso nativista voltado ao eleitorado fiel; rejeição a pilares da democracia liberal em nome de interesses políticos.
O futuro do Reino Unido fora da UE mostrará como funcionam, na prática e não nas redes sociais, as ideias daqueles que imprecam contra o “globalismo”, mas atingem de fato as instituições que garantem a globalização e o livre-comércio. A batalha de Trump para conquistar mais um mandato e o primeiro teste do Bolsonaro presidente nas urnas – as eleições municipais – submeterão ao crivo dos eleitores a realidade do projeto da direita nacional-populista. Brexit, Trump e Bolsonaro continuam a ser, em 2020, questões essenciais no Brasil e no mundo. Eis minhas apostas em relação a cada uma:
Boris e o Brexit – Com a vitória esmagadora dos conservadores nas eleições de dezembro e a aprovação na Câmara dos Comuns do acordo de divórcio fechado em outubro com a UE, é também provável que esse acordo passe pelo Parlamento Europeu e que, a partir de 31 de janeiro, o Brexit entre em vigor oficialmente. Cidadãos britânicos deixarão de ter os privilégios dos cidadãos europeus, empresas britânicas deixarão de ter de se sujeitar às normas europeias, novos controles alfandegários e fronteiriços serão implementados. Tão certo quanto o Brexit é a inviabilidade de os dois lados concluírem um tratado de livre-comércio até 31 de dezembro, prazo estipulado na declaração política que acompanha o acordo de saída. O adiamento das negociações é quase inevitável.
Ainda que os nacionalistas mundo afora passem a exibir o Brexit como exemplo de sucesso, dificilmente a realidade corresponderá à expectativa, sobretudo para as populações do Nordeste industrial, das zonas rurais e dos grupos que elegeram conservadores pela primeira vez. Mas as forças econômicas levarão mais de um ano para se manifestar. No ano que vem, o Brexit continuará a ser antes de tudo um problema político. Fora da UE, o Reino Unido continuará assombrado pelos mesmos espectros dos últimos três anos. Boris será obrigado a responder às dúvidas inapeláveis derivadas do divórcio.
Como funcionará na prática a fronteira virtual entre a Grã-Bretanha e a ilha irlandesa? Como o Parlamento reagirá à pressão escocesa por um novo plebiscito para a independência? Até que ponto as concessões aos europeus dificultarão uma negociação futura com os Estados Unidos? Boris aceitará um Brexit mais suave para apaziguar a pressão derivada das perdas resultantes de seu acordo? Rifará os aliados partidários do Brexit radical, agora que detém maioria parlamentar confortável e não precisa deles? E a oposição, como se reorganizará depois do fracasso épico de Jeremy Corbyn? Nenhuma dessas questões tem resposta pronta, mas todas apontam na mesma direção: um ano ainda turbulento, em que o véu da propaganda cairá no terreno enlameado e viscoso da realidade – e será impossível, a quem se escondia atrás dele, deixar de enxergar onde está pisando.
Trump e a reeleição – Mesmo tendo sofrido impeachment na Câmara, Trump deverá ser absolvido em qualquer julgamento do Senado, onde conta com maioria confortável. A verdadeira questão diante dele são as urnas em 3 de novembro. O impeachment tem, paradoxalmente, funcionado contra o plano dos democratas. O partidário mais fiel de Trump vê tudo como uma grande armação. Seu apoio continua intacto. Será, contudo, impossível a Trump alcançar a reeleição sem conquistar votos entre aqueles que não o veem com tanta simpatia. Vários argumentos são usados pelos que preveem sua derrota: o desempenho ruim nas eleições de meio de mandato em 2018 – quando os democratas recuperaram o controle da Câmara –, derrotas recentes em estados como Virgínia ou Kentucky, a impopularidade renitente (a aprovação dele dificilmente passa de 43%), o avanço demográfico das minorias favoráveis aos democratas (negros, latinos, jovens etc.), as pesquisas sugerindo erosão do apoio nos estados do Meio-Oeste que lhe garantiram a vitória em 2016.
Apesar disso, Trump tem um caminho claro e definido para a vitória: voltar a ganhar nos mesmos estados críticos. É por isso que tanto insiste nos mesmos temas e no mesmo estilo que agrada ao eleitor trumpista, o público majoritariamente branco, masculino e sem diploma universitário. Sabe que já perdeu em Nova York e na Califórnia. Pouco importa se irritar ainda mais o eleitorado jovem ou a classe média urbana. Fará campanha não para presidente dos Estados Unidos, mas para presidente do Wisconsin. Se vencer lá, é provável que leve novamente Michigan e Pensilvânia, talvez também Minnesota – e saia reeleito.
O fator decisivo será o comparecimento. Para derrotar Trump, os democratas precisarão de um candidato capaz de atrair grupos demográficos favoráveis nos estados decisivos: os negros que se encantaram com Barack Obama e não votaram em Hillary Clinton, os jovens que votarão pela primeira vez, os hispânicos incomodados com o discurso contra a imigração. Não é tão simples quanto parece. Os republicanos, em contrapartida, terão apenas de repetir e ampliar o sucesso em levar às urnas os brancos sem nível universitário e os eleitores das zonas rurais. Enquanto a campanha de Trump está a todo vapor, os democratas nem escolheram candidato. É até possível que qualquer democrata seja favorito contra um presidente tão impopular. Desta vez, porém, a probabilidade de vitória de Trump será bem maior do que era em 2016 – quando ele desafiou as previsões e venceu.
Bolsonaro e o Brasil – A estratégia política de Bolsonaro tem muito em comum com a de Trump: manter o discurso mobilizador, dirigido à base fiel, sem se preocupar em agradar o eleitor “moderado” ou de “centro”. Não o precoupa a pecha de “polarizador”. Enfrentar a esquerda, o PT ou qualquer outro inimigo imaginário o beneficia. Enquanto Trump se apoia num Colégio Eleitoral fragmentado em que a polarização facilita a vitória, Bolsonaro depende da eleição em dois turnos. Precisa apenas passar ao segundo contra um rival fácil de bater, como o PT se revelou em 2018. Nenhuma das barbaridades que emanaram de seu governo – e elas não foram poucas, das queimadas amazônicas ao descalabro na educação, na cultura ou na política externa – derrubou sua popularidade para baixo do patamar que lhe garante uma passagem confortável ao segundo turno em 2022.
Ainda é incerto o impacto que o caso Queiroz terá nesses números, embora dificilmente seja nulo. Também é uma incógnita o desfecho da tensão latente que se desenha com o único adversário em seu próprio campo político, o ministro Sérgio Moro. O gráfico abaixo, que reúne as avaliações do governo feitas pelos principais institutos de pesquisa desde o início do ano até dezembro, demonstra que Bolsonaro ainda tem alguma, embora não muita, gordura para queimar. Continua a contar com o apoio pouco inferior a um terço do eleitorado, o bastante para garantir sua presença no segundo turno:

A principal dúvida é como tal apoio se traduzirá nas eleições municipais, uma espécie de prévia do embate nacional. Brasil e Estados Unidos têm na enorme extensão territorial uma característica comum. Ninguém mantém o poder sem uma rede de apoios regionais. Repousa aí, por sinal, o segredo da resiliência petista. A despeito dos escândalos de corrupção, da condenação em repetidas instâncias e dos processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff por crimes fiscais que destruíram as contas públicas por ao menos uma geração – a despeito de tudo isso, o PT continua a contar com apoio sólido em universidades, sindicatos, movimentos sociais e governos estaduais espalhados pelo país. É tal rede que explica por que, desde a redemocratização, em todas as eleições para presidente, um petista chegou em primeiro ou segundo lugar. Ela voltará na certa a demonstrar sua força nas eleições para prefeitos e vereadores.
Bolsonaro não dispõe de malha remotamente comparável ou articulada, mesmo que conte com uma gestão competente de suas redes sociais. A briga com o partido que o elegeu, o PSL, e as dificuldades para fundar um novo, a Aliança pelo Brasil, são um sinal dos desafios que enfrenta para estender regionalmente o poder conquistado de modo rápido (ou mesmo prematuro) na esfera nacional. Ainda que registre oficialmente seu partido antes de abril, a tempo de indicar candidatos ao pleito de outubro, o arco de alianças locais lhe oferece um desafio singular. Lideranças regionais como os governadores João Doria ou Wilson Witzel não terão interesse em facilitar a vida de Bolsonaro. Para não falar em partidos estabelecidos como DEM, PSDB ou PMDB, por mais que apoiem os projetos do governo no Congresso. Ou na oposição do PT e da esquerda, que tem, no peronismo argentino, uma inspiração para seu ressurgimento. Ou no escândalo Queiroz – mesmo que não o atrapalhe, certamente não ajudará. Ou na a atitude de Moro, por ora fiel ao chefe, mas impenetrável como uma esfinge.
As eleições municipais oferecerão a primeira medida da extensão real do bolsonarismo depois da onda antipetista que o projetou ao poder. Também para Bolsonaro, a vaga se encontrará com o rochedo da realidade. A recuperação econômica (o crescimento previsto para 2020 é superior a 2%) e o sucesso nas urnas de análogos como Boris ou Trump sugerem que ela pode ser maior do que seus inimigos gostariam que fosse.

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