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Normas culturais, influências religiosas e policiais de bairro amigáveis fazem com que sejam altas as chances de recuperar coisas perdidas no Japão; mas isso não quer necessariamente dizer que os japoneses sejam mais honestos. Em 2018, 83% dos celulares perdidos foram devolvidos aos seus donos
Getty Images/BBC
Para a maioria das pessoas, perder a carteira ou a bolsa é mais do que um inconveniente. Embora os celulares agora permitam fazer pagamentos, armazenem documentos e nos ajudem a achar o caminho de casa, ainda há algo tranquilizador em ter tudo isso em versão física.
Além disso, a perda desses itens pode significar ter de passar pelo inconveniente de cancelar cartões ou trocar as fechaduras de sua casa.
Mas há um lugar em que você tem uma probabilidade grande de encontrar seus pertences: Tóquio.
Com a população da cidade se aproximando rapidamente de 14 milhões de pessoas, milhões de itens desaparecem a cada ano. Mas um número impressionante deles volta para casa.
Em 2018, mais de 545 mil documentos de identificação foram devolvidos a seus proprietários pela Polícia Metropolitana de Tóquio — 73% do total dos que foram perdidos. Da mesma forma, 130 mil telefones celulares (83%) e 240 mil carteiras (65%) foram devolvidos aos seus donos. Frequentemente, isso foi feito no mesmo dia.
“Quando morava em San Francisco, lembro de uma notícia sobre alguém em Chinatown que perdeu a carteira e outra pessoa a entregou à polícia”, diz Kazuko Behrens, psicóloga do Instituto Politécnico da Universidade Estadual de Nova York, nos Estados Unidos.
Foi um caso tão raro que a pessoa foi entrevistada pelo canal de notícias local e recebeu o título de “homem honesto”.
Tais atos de integridade não são tão raros no Japão, país natal de Behrens. “[Para os japoneses] é algo do tipo ‘É claro que eles devolveriam'”, diz. De certa forma, tornou-se incomum não devolver um item perdido. Isso sim seria uma surpresa.
O conceito de propriedade comum é quase inexistente no Japão, a não ser por algumas pessoas que consideram os guarda-chuvas algo assim
Getty Images/BBC
Mas o que estimula quem encontra o objeto a entregá-lo à polícia? Não parece ser a oportunidade de ficar com os bens perdidos caso ninguém os reclame, ou pela recompensa em dinheiro.
Dos 156 mil telefones celulares entregues à polícia naquele ano, nenhum ficou com quem os achou ou com o Estado. Os 17% que não foram devolvidos aos proprietários foram destruídos.
Parte da resposta pode estar nas pequenas delegacias de bairro do Japão, chamadas kōban. Essas delegacias são abundantes nas cidades (em Tóquio, existem 97 a cada 100 km², em comparação com 11 delegacias por 100 km² em Londres), o que significa que você nunca está muito longe de um local onde pode obter ajuda.
Os policiais de uma kōban são amistosos — eles são conhecidos por repreender adolescentes que se comportam mal ou ajudar idosos a atravessar a rua.
“Se uma criança vê um policial na rua, geralmente o cumprimenta”, diz Masahiro Tamura, advogado e professor de Direito da Universidade Kyoto Sangyo, no Japão. “Quanto aos idosos que vivem no bairro, os policiais ligam para suas casas para garantir que eles estão bem.”
Esses policiais são tão estimados que foram protagonistas de uma famosa série em quadrinhos, chamada Kochikame, que durou 40 anos.
“Entregar um item perdido ou esquecido é algo que é ensinado desde cedo. As crianças são incentivadas a entregar itens perdidos à kōban, mesmo que sejam 10 ienes (R$ 0,30)”, diz Tamura.
“Se alguém entregar uma moeda, o policial a tratará como qualquer item perdido. Um relatório será feito, e a moeda ficará sob custódia policial. No entanto, sabendo que ninguém buscará por ela, a polícia devolverá a moeda como recompensa. Embora o valor monetário seja o mesmo, o processo de entregar a moeda à polícia é diferente de ficar com ela de imediato. Um é crime, o outro é uma recompensa.”
Em um estudo que comparou Nova York e Tóquio, 88% dos celulares “perdidos” pelos pesquisadores foram entregues à polícia na capital japonesa, em comparação com 6% na cidade americana. Da mesma forma, 80% das carteiras de Tóquio foram entregues, em comparação com 10% em Nova York.
A abundância de delegacias de polícia deve facilitar as coisas, mas há algo mais acontecendo.
Honestidade
Guarda-chuvas perdidos, por outro lado, raramente são recuperados por seus proprietários. Dos 338 mil entregues ao serviço de achados e perdidos de Tóquio em 2018, apenas 1% voltou para seus donos. A grande maioria — cerca de 81% — foi reivindicada por quem os encontrou, o que é uma peculiaridade em si.
Assim como a tendência de se tirar proveito da pouca importância dada a guarda-chuvas. Sabendo que muitas pessoas deixariam de reivindicar seu guarda-chuva, Satoshi, um ex-morador de Suginami-ku, Tóquio, diz que costumava enganar o responsável pelo achados e perdidos em dias chuvosos.
Satoshi dizia ter perdido um guarda-chuva do tipo mais comum, feito de plástico transparente e vendido em lojas de conveniência por 500 ienes (R$ 19). Como havia muitos deles, ele diz que sempre conseguia um.
A abundância de pequenas delegacias de bairro, chamadas ‘kōban’, significa que um local de nunca está longe
Getty Images/BBC
Talvez, então, a honestidade não seja a motivação principal nesses casos. Na verdade, o Japão tem uma história complicada com honestidade, diz Behrens.
Tome como exemplo os cuidados com a saúde. Há 10 ou 20 anos, era bastante normal para médicos no Japão não revelarem diagnósticos aos próprios pacientes. Em vez disso, eles apenas contavam aos familiares mais próximos. Um paciente não sabia se tinha câncer, por exemplo, e muito menos qual era seu prognóstico.
“Os japoneses acreditam que isso pode fazer você perder a vontade de viver, então, os familiares tentam passar a ideia de que não há nada errado. Os ocidentais ficam chocados ao ouvir isso”, diz Behrens.
As motivações por trás disso são complexas e profundamente enraizadas na cultura japonesa. Mais recentemente, isso começou a mudar, mas faz algumas pessoas, como Behrens, pensarem que os japoneses não são mais honestos do que o resto de nós.
Behrens diz que os japoneses são condicionados por um “medo” que deriva das crenças budistas na reencarnação. Apesar da maioria dos japoneses não se identificar com uma religião organizada, muitos mantêm práticas xintoístas e budistas — com ênfase na existência espiritual além da morte — que desempenham um papel importante nos funerais.
Alguém está vendo?
Após o tsunami que atingiu o nordeste do Japão em 2011, muitos ficaram desabrigados, sem bens, comida ou água.
Mas, mesmo na adversidade, muitas pessoas colocaram as necessidades dos outros à frente das suas próprias. Behrens compara isso ao ethos budista de gaman — pensar nos outros, e não em si mesmo.
Foi amplamente divulgado pela imprensa que houve significativamente menos saques nas áreas afetadas do Japão do que em áreas similarmente devastadas em outros países. O fato de haver saques foi fora do comum, diz Tamura. No entanto, ele aponta para um exemplo que revela uma visão fascinante da psique humana.
“Depois que os reatores nucleares de Fukushima falharam por causa do terremoto de 2011, a área ficou isolada por meses devido à alta radiação”, diz Tamura.
“Os roubos só ocorreram porque não havia absolutamente ninguém, nenhuma força policial ou alguém por perto para testemunhar o malfeito.”
Tamura descreve o conceito de hito no me, o “olho da sociedade”. Mesmo sem a presença da polícia, nenhum roubo ocorrerá enquanto houver hito no me. Mas, em um lugar onde não há ninguém, ocorrem furtos.
Guarda-chuvas perdidos raramente são recuperados por seus proprietários
Getty Images/BBC
No xintoísmo, tudo, de pedras a árvores, possui um espírito. Ainda que o xintoísmo organizado seja uma prática religiosa minoritária no Japão, objetos oniscientes permeiam a cultura do país.
É daí que surge a ideia de Behrens de que o povo japonês é motivado pelo “medo”. Se você está sempre sendo vigiado e sua disposição natural é pensar nos outros primeiro, é natural que você se dê ao trabalho de devolver um item perdido.
Coletivismo
De um modo geral, as pessoas no leste da Ásia compartilham traços coletivistas, priorizando os outros e adotando comportamentos que beneficiam o grupo, em vez de traços individualistas, que geralmente são motivados por egoísmo.
Behrens não botou fé nessa generalização no início de sua carreira, mas, atualmente, acredita que, em geral, esse espírito existe.
Em um estudo, mães americanas e japonesas foram convidadas a falar sobre suas aspirações para os filhos.
Behrens descobriu que as mães japonesas desejavam que seu filho levasse uma vida futsuu (média ou comum), mas quase nunca viu isso nas americanas. Nem todas as mães americanas queriam que seu filho fosse uma estrela internacional, mas no caso japonês, era uma vontade predominante.
“A visão coletivista é sobre pertencimento. Ser expulso do grupo ao qual você pertence seria o trauma mais significativo para a saúde mental. É tão importante pertencer a algum grupo de alguma forma. Fazer uma boa ação, devolver uma carteira; você sente que, no futuro, alguém fará o mesmo”, diz Behrens.
“Isso é algo que eu acredito que está incutido em nós. Existe uma beleza em fazer algo pelo outro. Quando alguém entrega um objeto à polícia, não está tentando obter algo em troca. E se a pessoa estiver com problemas ou precisar desta coisa?”
Mark West, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e especialista em direito japonês e no sistema jurídico do país, realizou o teste de queda de carteira em Nova York e Tóquio.
Ele diz que “as pessoas no Japão têm suas propriedades perdidas devolvidas por causa de leis e normas, e não por uma noção intrínseca de honestidade”.
O conceito legal de propriedade no Japão não é algo “estranho”, afirma. “A propriedade comum é praticamente inexistente, exceto pelo fato de muitas pessoas parecerem considerar os guarda-chuvas como algo assim.”
A abundância de policiais e tradições culturais que levam as pessoas a pensar primeiro nos outros são talvez mais esclarecedoras do que qualquer noção de que os japoneses sejam mais honestos, aos olhos de Behrens e West.
De qualquer forma, se você estiver passando por uma kōban, pode valer a pena parar para dizer “oi”.

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